Eu poderia falar sobre mil coisas envolvendo Fleabag, mas hoje eu quero focar numa interpretação específica dessa série: Fleabag é muito mais sobre aprender a lidar com a dor do que sobre a dor em si.
Um dos hábitos mais insuportáveis que o ser humano tem é a constante necessidade de tornar algo extremamente deprimente para que se torne algo intelectual. É muito triste que uma série que se tornou referência de como escrever ótimos diálogos tenha caio na mão de pessoas que preferem usar esse tipo de mídia para alimentar seus hábitos ruins do que realmente lidar com eles, até porque, é muito mais fácil apontar para Fleabag diante de toda sua miséria e falar “ela é tão eu” do que realmente enxergar oque a personagem faz para resolver seus problemas.
Em Fleabag, a personagem se encontra numa situação inegavelmente ridícula. É como se cada escolha que ela faz contribui ainda mais para sua queda que já está em constante há algum tempo. Sua mãe morreu, ela transou com o namorado da sua melhor amiga, causando o suicídio acidental da mesma, além do fato que a mulher está a um dia ruim da ninfomania. Ela se encontra perdida constantemente e cansada da sua própria cabeça, cansada da dor que mulheres carregam dentro de si desde o momento que nascem. Mas e se a narrativa de Fleabag não for sobre essa dor em si, mas sim sobre o processo e capacidade de superá-lá?
Quando falamos da parte técnica de Fleabag, é inegável sua produção maravilhosa. A câmera é utilizada em produções audiovisuais para reproduzir sensações e ideias desde o primórdio do cinema, mas a forma que a câmera faz com que nós, telespectadores, nos tornemos um personagem crucial na série é impecável. Viramos amigos da personagem, um diário da personagem, e isso tudo ainda estando fora da narrativa, cria uma relação de proximidade que nos faz acreditar que sabemos de tudo que passou na mente dela, mas assim como um amigo e um diário, Fleabag só compartilha com nós o que ela se permite. Acreditamos que conhecemos a personagem como astuta e confiante de si mesmo dentro de seus erros, mas esquecemos de notar o óbvio, que ela tenta esconder atrás do seu humor ácido e força para se defender: ela só quer ajuda. Ela só quer não ter que encarar seus medos e erros sozinha, como qualquer outro ser humano.
“I want someone to tell me what to wear every morning. I want someone to tell me what to eat. What to like, what to hate, what to rage about. What to listen to, what band to like. What to buy tickets for. What to joke about, what to not joke about. I want someone to tell me what to believe in. Who to vote for and who to love and how to tell them. I think I just want someone to tell me how to live my life, Father, because so far I think I've been getting it wrong.”
— Fleabag, Fleabag, Season 2: Episode 4
Nós temos uma tendência de achar que um dia vamos saber exatamente de tudo que estamos fazendo, que um dia vamos acordar com cada aspecto de nossa vida resolvido, mas a verdade é que sempre vamos estar numa constante transformação enquanto humanos. Não importa o quanto acreditemos que já sabemos oque precisamos saber sobre nós mesmos, apenas tolos se satisfazem.
Fleabag se encontrou dentro de relações ruins com homens, sua família, com seu passado e consigo mesma, e mesmo sendo muito mais fácil não fazer nada para sair dessa situação e apenas ver sua realidade atual como sua realidade final, ela encarou todas as situações com a vulnerabilidade necessária para ser sincera com seus próprios sentimentos mas ainda se colocando como prioridade. Ela foi capaz de sentir a dor de sua irmã não acreditando na sua palavra sem perder a necessidade de se defender. Ela foi capaz de desenvolver uma relação tolerável com sua madrasta, mesmo que isso significasse roubar uma estátua dela toda vez que tivesse chance. Ela foi capaz de lidar com o luto e com a culpa, teve a coragem de identificar e bater de frente com seus hábitos ruins, e no final de tudo, ainda foi capaz de amar, mesmo diante do previsível desastre pessoal que seria Deus ser a prioridade de um padre.
Fleabag é sobre uma mulher vivenciando diversas formas de perda, ainda sendo capaz de não perder a si mesma.
Ps: Assistir Fleabag pela primeira vez pouco tempo depois de descobrir o que é culpa católica através de uma piada do John Mulaney é uma experiência única e terrivelmente difícil de se explicar, mas vamos apenas deixar claro que eu ainda lembro da primeira vez que fui capaz de digitar “padre gato da Fleabag” sem achar que ia morrer.